terça-feira, 30 de julho de 2013

LETES

            Ela se esqueceu do número, se lembrou do número na carteira, se esqueceu de onde estava a carteira, se lembrou de que estava no sobretudo, se esqueceu de onde estava o sobretudo, se lembrou de que estava no guarda-roupa do fundo, se esqueceu de onde se localizava o fundo, procurou o fundo, que no fundo talvez não estivesse no fundo, mas sendo no fundo a possibilidade de que não estivesse, devesse procurar ainda o fundo, algum fundo, mesmo que fosse uma espécie de superfície aparente ou mesmo uma superfície profunda, aprofundada em sua própria espécie de superfície ao menos até enquanto durasse o discurso da durée que, antes de qualquer discurso, só em discurso se configura para esta figura feminina que no Letes se esquece e após, esquecida, se esquece do Letes, mas um orvalho nos cabelos ou nos olhos respinga nos lábios e novamente ela se esquece no Letes e se esquece de tudo, e este ciclo, este eterno retorno que também progride conflui de algum modo misterioso como alétheia para o fundo do seu peito (seu e não dela), que é também uma espécie de superfície aprofundada, e lá só há esquecimento, lá ela se esquece de, lá ela se esquece, seu coração (seu e não o dela, o coração, o eterno símbolo vão) é o Letes.  

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