terça-feira, 13 de julho de 2010

ESTADO DE GRAÇA

Casaram-se há cinqüenta anos. Há cinqüenta anos se torturam, mutilam-se, aniquilam-se física e moralmente. Após os conflitos, às vezes se perdia um dedo, uma orelha, um dente. Ela não tinha um olho, mas permanecia com seus belos traços abaixo das chamativas cicatrizes, mesmo na velhice. A humilhação não ocorria somente no momento agradável do sexo, mas igualmente no momento desagradável das relações sociais e cotidianamente familiares. Assassinaram o filho antes de nascer. (Talvez para não tê-lo assassinado depois?). Ele claudicava, mas a memória de sua boa postura se esforçava para equilibrar a antiga elegância e leveza. Tinham traumas, síndromes e fobias. Um pouco antes de morrer (agonizaram em mesmos dia e hora), abraçaram-se, choraram, amaram intensamente, como sempre, e rogaram a clemência do Senhor. Ela disse, entre lágrimas, que foi feliz, mas foi triste, pois queria ter sido prostituta ou freira. Ele disse, entre lágrimas, alguma outra coisa sem importância, ou melhor, de toda importância, pois estavam em estado de graça.

Um comentário:

lu trevejo disse...

Isso tem uma cara de Chico Buarque que nao dá pra acreditar...
Talento é alguma coisa de mágica..
Algo que emociona e sensibiliza.
Parabens pelo seu talento com o manuseio das palavras